Autópsia mostra realidade crua e necessária nos palcos – Crítica do espetáculo
O espetáculo de abertura do Prêmio Sesc do Teatro Candango em 2018 foi Autópsia – A continuação (Ato IV). A impactante realidade proposta pelo grupo Sutil Ato entra mais uma vez em cena para mostrar o caráter atual do teatro. No palco, a ficção empresta seus corpos para falar do que é real e urgente. A festa de premiação será no dia 4 de dezembro
Um teatro a serviço de seu tempo. Narrativas que optam por colocar o dedo na ferida. Enfim, escancarar aos olhos tudo o que fingimos não ver ou nos esquecemos de enxergar no cotidiano. Autópsia III e IV dá continuidade ao excelente e forte trabalho do grupo Sutil Ato iniciado em 2011, quando ainda tinha ares de projeto de faculdade. Em 2014 os primeiros atos ganharam o gosto do público em Brasília e, desde então, deixaram claro que o grupo se coloca a serviço da sociedade em cena.
Foto: Diego Bresani
Por fim, a ideia de Autópsia é seguir os preceitos de Plínio Marcos, nome que inspirou toda a dramaturgia: “Eu faço teatro em favor do povo, faço para incomodar os que estão sossegados”.
No trabalho atual, duas das camadas mais esquecidas e tratadas como invisíveis ganham espaço e protagonismo. As histórias foram escritas pelos próprios integrantes a partir de encontros e entrevistas com cidadãos que vivenciaram ou vivenciam o sistema penitenciário do Distrito Federal e com recicladores do aterro de lixo da cidade estrutural. Enfim, histórias que se cruzam, entrelaçam e se completam entre o caos. Desemprego, crise, morte, cárcere, liberdade, sonho, vontade, vazio e reconstrução. Por fim, no palco, histórias de quem vive entre o limite da resignação e da insanidade em Autópsia.
Sem medo, cada ator entrega-se por completo ao trabalho. Um emaranhado de corpos que pulsam até a última potência. O elenco cria a partir da própria realidade e não tem receio de usar o erotismo, o grito, o impacto ou a violência. Em cena, histórias que transitam em nosso próprio cotidiano. Quantos catadores caminham despercebidos lado a lado ao que reconhecemos como nossa experiência?
A importância crua de Autópsia
Os trabalhos do Sutil Ato são marcados pelo debate social e por colocar à prova a realidade brasileira. O grupo cria incômodo e questionamentos através do ofício da arte. A direção e dramaturgia de Jonathan Andrade confirmam a potência de um dos grandes nomes da cena teatral de nossa cidade. Logo depois, nos orgulham ao representar tão bem a criação cênica de Brasília. Profissionalismo, técnica, treino, entrega e vivências se reúnem para dar vida a um dos textos mais fortes do Cena.
A cenografia de Autópsia foi criada para dialogar com a realidade que perceberam durante o processo. Garrafas, brinquedos velhos, sacos e materiais de todo o tipo foram comprados no próprio lixão e transformados em cenário. Os figurinos de catadores foram entregues por famílias reais que trabalhavam no local.
Na primeira metade, a realidade do cárcere aparece crua. Com grades à mostra e sonhos que resistem em um espaço pronto para abater qualquer resquício de dignidade. No último ato, as relações humanas que se fortalecem onde o lixo sobressai. Gente que luta para não ser confundida com a montanha de restos que precisa desbravar. Nos dois atos de Autópsia a experiência humana e as relações criadas entre indivíduos parecem se destacar como a última alternativa possível à sanidade.
Entre a ficção e a realidade
No palco, um turbilhão de questionamentos éticos e uma pequena mostra de nosso caos social. As parcelas mais marginalizadas são retratas para relembrar que há muito mais no mundo do que nossa pequena indignação. Logo depois, para experimentar melhor a realidade de cada figura retratada na montagem os atores participaram de vivências com presos e moradores da Estrutural.
O cheiro constante, os urubus, a montanha de lixo, a imensa quantidade de moscas. Além disso, a dificuldade do corpo frente ao sol, ao risco e ao calor mudaram de vez a percepção de cada integrante. As experiências foram brutais e transformadoras. É, enfim, perceptível o entendimento do elenco em cena. Ao fim do espetáculo, cada criador compartilha com o público um pouco do que reverberou de sua experiência pessoal naqueles lugares. De olhos abertos ou fechados, atentos ou distraídos, estamos todos irreversivelmente distantes e absolutamente próximos. É preciso enxergar sem lentes o caminho que nos cerca.
Crítica originalmente escrita e publicada no Festival Cena Contemporânea 2018:
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