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Foto do escritorIsabella de Andrade

Fernanda Torres cria amplo retrato do ofício do ator em A glória e seu cortejo de Horrores [Resenha

A glória e seu cortejo de horrores, novo romance de Fernanda Torres, publicado pela Companhia das Letras, já nos pega pelo título bem pensado e pela capa incrível. Entre as páginas de seu terceiro livro, a mistura certeira da bagagem de atriz que subverte as próprias experiências no palco enquanto escritora.

Fernanda dá voz ao personagem-narrador Mario Cardoso, um experiente ator que experimentou o ápice do sucesso televisivo e viu o nome entrar em decadência constante.

Do amplo reconhecimento oferecido aos intérpretes de alto escalão da maior emissora do país, o ator descende ao desespero dos comerciais infames para ganhar alguns trocados. O título inteligente é uma frase de sua mãe, Fernanda Montenegro, um dos grandes nomes da produção audiovisual brasileira.

Para os apaixonados por literatura e teatro, como eu, a obra é um prato cheio. Fernanda Torres mostra com detalhes o conhecimento primoroso que guarda dos trabalhos realizados entre palcos, coxias, câmeras e bastidores.

As cenas esdrúxulas de um espetáculo experimental e a descrição irritada dos ensaios não produtivos me levam imediatamente a um passado recente, em que artistas tentam levantar imensas produções sem um tostão furado.

Fernanda Torres, a tradição e a contemporaneidade dos palcos

Os ensaios tensos e cansativos de um ator que já não compreende mais o sentido do próprio trabalho criativo. Mario nos conta de maneira envolvente a trajetória de ascensão e queda que culmina no protagonismo vexatório de um rei que vende papel higiênico na TV.

Passagens histórias do Brasil se misturam na narrativa e a dificuldade do teatro feito entre os anos de ditadura aparece de maneira sutil no cotidiano e lembranças dos intérpretes.

O protagonista, um ator de meia idade, revela os dias de sorriso enquanto estrela de telenovelas e o descaso por sua versão em total declínio, decidido a montar sua própria versão de um grande clássico de Shakespeare.

As lembranças de sua juventude firme no teatro político aparecem próximas às participações na produção audiovisual brasileira, nos tempos de Cinema Novo, em 1960. Mario é o retrato desastroso do ideal artístico que sucumbe às necessidades do mercado. A história é vívida e válida a todo tempo.

O trabalho em cena que flui entre as páginas

Fernanda Torres é atriz há mais de 35 anos e mostra o talento nato para a escrita entre as páginas envolventes da nova obra. O universo em que passou toda a sua vida serve de material criativo para o ambiente criado entre as páginas.

O triunfo do artista é colocado em prova e o leitor pode entender um pouco mais das dificuldades do ofício. A chegada ao instante de glória, como mostra Fernanda, está constantemente acompanha da possibilidade iminente do fracasso.

Enquanto leitora, o livro me encanta e finalizo com vontade de começar outra vez. Enquanto atriz, consigo sentir a dúvida. Além dela, a vontade do fim e a necessidade do recomeço que acompanham a trajetória teatral de Mario.

Uma temporada fracassada, o público que não comparece. A eterna dúvida entre a arte, o mercado criativo e a necessidade comercial. Fernanda Torres nos toca, enquanto produtores criativos, em pontos extremamente difíceis e desgastados. As ideias estapafúrdias de um diretor que crê na própria genialidade.

A narrativa tem uma reviravolta inesperada antes de avançar para sua segunda parte. O final do livro é surpreendente, assim como os últimos momentos da história contada por Mario. Fazer teatro é uma luta e ler Fernanda Torres é um deleite.

Trecho inicial do livro de Fernanda Torres

“Foi um instante — sopra, vento, eu uivei em meio à tempestade, apesar da rouquidão que me perseguia desde a estreia; o elenco agitando os trovões de lata, a ideia imbecil do gênio do diretor que pretendia ser maior que Shakespeare. Os ensaios tensos, a desgraça do português, que usa três vezes mais palavras do que o inglês para dizer a mesma coisa, a cabeça girando para dar conta de uma imagem, e outra, e mais outra, a surra.

Minha ilusão de que estava progredindo foi para o ralo no dia em que o inventor da roda deu uma chapa de metal para cada um dos atores e mandou os idiotas chacoalharem aquela porcaria com o empenho de bestas-feras.”

 

Sinopse da editora

A glória e seu cortejo de horrores, novo romance de Fernanda Torres, autora de Fim, acompanha as desventuras de Mario Cardoso. Um ator de meia idade, dos dias de sucesso como astro de telenovela até a total derrocada quando decide encenar uma versão de Rei Lear. As coisas não saem exatamente como esperava. Mescla eletrizante de comédia de erros e retrato do artista, o livro atravessa diversas fases da carreira de Mario (e da história recente do Brasil).

Suas lembranças de juventude no teatro político, a incursão pelo Cinema Novo dos anos 60, a efervescência hippie do Verão do Desbunde. O encontro com o teatro de Tchékhov, a glória como um dos atores mais famosos de uma época em que a televisão dava as cartas no país. Um painel corrosivo de uma geração que viu sua ideia de arte sucumbir ao mercado, à superficialidade do mundo hiperconectado e, sobretudo, à derrocada de suas próprias ilusões.

 

Leia mais resenhas no site: http://ociclorama.com/category/resenhas/


A glória e seu cortejo de Horrores

Autora: Fernanda Torres

Ano: 2017

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 2016

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