Galileu Galilei: Atual luta do século passado
Hoje, assim como em 2016, data em que assisti a esse espetáculo, me sinto em 1633, ano em que Galileu Galilei foi banido para uma vila em Arcetri, perto de Florença, onde viveu em prisão domiciliar até sua morte, em 1642. O cientista demonstrava descobertas revolucionárias por demais, contrariando as vontades dos senhores do poder estabelecido, que negavam a obviedade dos fatos. A ideia da Terra não ser o centro do Universo ameaçava convenientes estruturas de poder.
Quem sobreviverá às fogueiras da inquisição?
“Infeliz a terra que precisa de heróis”, com essa frase podemos sintetizar os sentimentos que se expandem entre público e plateia, antes e depois do espetáculo. Levando aos palcos os temas mais frequentes da obra de Bertolt Brecht – o problema do herói, sua discutível necessidade e o uso da razão como instrumento de luta contra a barbárie – a peça desembarca em momento extremamente oportuno em Brasília. Capital do país e centro político brasileiro, a cidade foi palco, no mesmo domingo (1º de maio), para mais uma manifestação pró-governo, desta vez, liderada por movimentos e partidos que tomavam como gancho o dia dos trabalhadores.
O espetáculo narra parte da biografia do cientista italiano que conseguiu provar que a Terra gira em torno do sol, mas foi obrigado a negar publicamente a sua descoberta para não ser queimado nas fogueiras da Santa Inquisição.
Enquanto isso, fora do teatro da Caixa, as ruas brasilienses se ocupavam com a efervescência política do ano de 2016 (iniciada ainda em 2014, logo após o resultado apertado das últimas eleições presidenciais). A plateia acompanhava, no palco, o desenrolar da história do cientista que tentava driblar o pensamento excludente e arcaico da época e, fora dele, as decisões e reviravoltas de uma política atual que teima em se mostrar retrógrada.
Ideias Conflitantes
As ideias conflitantes e extremistas de uma sociedade que não se deixa contaminar por ideias novas e pioneiras; os pensamentos opostos; a necessidade de permanecer, estagnados, no mesmo lugar em que a ciência, o pensamento social e o desenvolvimento humano se mostram colocados. Das cadeiras do teatro, é possível dizer que boa parte do público entendia e refletia: A arte imita a vida? Ou a vida imita a arte?
Ao final do espetáculo, já do lado de fora do edifício teatral, o elenco conversava com uma pequena parcela de espectadores que aguardavam no local e, ainda contaminados com o êxtase de seus personagens, afirmavam: “Não acreditamos que estamos em Brasília nesse momento, é bem o olho do furacão. As reações do público têm sido fortes, mas hoje foi a primeira vez que tivemos que pausar a peça por alguns instantes e escutar o que a plateia, com a garganta apertada, tinha para nos dizer”.
O momento a que se referia o ator aconteceu em uma cena impactante de Galileu Galilei, quando todo o elenco se encontrava reunido no palco. Munidos de panelas e colheres os manifestantes, que eram a favor da manutenção da ordem e impedimento ao progresso, em pleno século XVII faziam o seu panelaço – em nome de Deus e da família – incentivados pela ideia de manter as certezas da época. Desta maneira, o homem continuaria a exercer seu papel de pequeno deus no centro de seu próprio mundo e a Terra continuaria estática, sendo rodeada pelo sol.
Com a interpretação primorosa e bem-humorada de Denise Fraga é possível enxergar o astrônomo apresentado por Brecht, que não se mostra como um grande herói, mas um homem comum que gosta de comer bem e aspira à riqueza. E sim, no palco a figura feminina de Denise desaparece e é possível enxergar o homem. Sobre o papel, a atriz afirma: “Galileu não é obviamente um papel para mim. Mas o teatro não tem limites e, a meu ver, se torna mais interessante quanto mais teatro for, quanto mais chamarmos o público para, num pacto, vivenciar conosco o milagre do nosso ofício”. E vivenciamos. Ao longo do espetáculo podemos acompanhar o desenrolar e as diferentes facetas de um personagem extremamente humano.
Na pele cuidadosa da atriz, enxergamos as nuances de pensamento, ânimo e produção do cientista. Denise Fraga coloca no palco um Galileu ainda jovem e voraz por suas próprias descobertas, seguido pelo homem maduro que tenta se fazer acreditar pela sociedade e enfim, acompanhado pelo velho astrônomo que teima em escrever suas ideias (às escondidas) enquanto deixa a barriga crescer.
As mudanças físicas e emocionais, os diferentes trejeitos e corpos das mais diversas idades são levados de maneira simples e eficaz para a plateia. Lembro-me ainda perfeitamente da cena em que a atriz se desfaz da personagem para apropriar-se de um trecho importante do texto de Brecht, falando diretamente para a plateia, com a sua própria voz e seu corpo pessoal, a atriz mostra o quanto a obra do autor lhe traz identificação e certeza. Em poucos segundos Denise retoma seu corpo de velho cientista e termina o trecho em questão com uma voz em transição, até colocar Galileu novamente no palco. O momento me marcou.
Enquanto isso, os demais personagens reforçam o espetáculo e aumentam ainda mais a relação entre artista e espectador. A presença de figuras estereotipadas ou grotescas, como os professores arrogantes da Universidade e o cachorro raivoso de sunga, interpretado por Ary França, conectam e atraem a plateia cada vez mais ao círculo que compõe o palco. A trilha sonora é bem executada e colocada de maneira a enriquecer e suavizar a dramaturgia. As músicas, tranquilamente interpretadas, trazem alguns momentos de respiro para o público, que pode refletir e absorver melhor a quantidade de ideias, lutas e problemas apresentados. É possível afirmar que boa parte da plateia sente-se parte do espetáculo, principalmente, com a identificação atual tão presente.
Outro destaque da peça é Daniel Warren, interpretando o pupilo de Galileu, que segue e aprende suas ideias desde a infância, tomando o caminho científico na idade adulta. É para ele que o astrônomo entrega seu último manuscrito, escrito às escondidas em sua prisão domiciliar, confiando a honra de fazer o livro atravessar o continente. Warren nos mostra a caminhada do menino que se torna homem e coloca a maturidade adquirida pelo personagem de maneira sincera e digna.
O pequeno monarca de Jackie Obrigon tem ainda suas ordens decididas e controladas por senhores retrógrados, marcando outro ponto singelo e bem-humorado da peça. O pequeno rei, que pisa no chão somente com livros sob seus pés, mostra grande interesse pelo telescópio e pelas descobertas no céu feitas por Galileu. Mas em nome de ordens superiores o menino precisa também se deixar calar. A atriz que o interpreta mostra cuidado em não fazer a criança de forma extremamente caricata e assim, desperta empatia no público.
Acredito que o objetivo principal do espetáculo, contar a história de Galileu Galielu e fazer a atual sociedade refletir sobre seus próprios valores, tenha sido alcançado. O término é suave e otimista, tendo me feito sair do teatro com a sensação agradável de que, por mais dificuldade que o caminho nos imponha, é sempre possível de alguma maneira, continuar a caminhar.
A obra de Bertolt Bretch é de resistência e coloca seu texto de maneira potente e convidativa. A atmosfera criada é a de que todo e qualquer ser humano precisa sair de sua própria inércia. Como bem afirma a diretora Cibele Forjaz, “o mundo não é regido por verdades superiores, imutáveis, que nós temos que aceitar e nos adequar”. Ao contrário disso, é possível, e aconselhado, que mantenhamos sempre a capacidade de duvidar, questionar, refletir e agir.
“Seremos ainda cientistas se nos desligamos da multidão? Vocês trabalham para quê? Eu acredito que a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência humana”.
(A vida de Galileu, de Bertolt Brecht)
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