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Foto do escritorIsabella de Andrade

Reflexões teatrais – Jonathan Andrade

Reinventado e transformado ao longo de sua própria história, o fazer teatral se legitima como importante caminho de expressão cultural e social através do tempo. O espaço cênico, em seu exercício cotidiano de encontro ao presente, possibilita o trabalho com a criação de novos mundos e contribui para desenferrujar padrões e percepções fixadas sobre si mesmo e o lugar onde se vive. Questionado, muitas vezes, pelo alcance a plateias menores, o teatro se reafirma como a arte do instante e do encontro, provocando novas ideias e percepções.
As possibilidades cênicas se reinventam a cada dia, saindo em busca de espaços não convencionais, ocupando ruas, casas e becos. A partir destes questionamentos e estimulados pelo desejo de expandir cada vez mais a transformação social através da cultura, artistas da cidade mantêm vivas suas criações e dialogam sobre como este espaço pode interferir positivamente em seu próprio tempo.
Confira abaixo entrevista feita com o ator e produtor cultural Jonathan Andrade.

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Acredita que o teatro é um espaço de reflexão política e social? Como essa relação pode acontecer? De que maneira o teatro pode instigar mudanças?
O teatro é inevitável e indissociavelmente político e social. Essa relação pode acontecer em diversas camadas e provocações, mas a primeira talvez seja a camada do corpo e da identidade de um indivíduo em encontro de expressão, público e artista, reverberando voz, discurso e sentidos a partir de subjetividades, afetos e visões de mundo. Talvez seja esse um dos legados mais potentes e necessários nos tempos que vivemos: um corpo abraçar-se na liberdade de se expressar entendendo as múltiplas e variadas individualidades e visões de mundo que existem. Para isso é preciso pertencer-se. O teatro evoca pertencimentos. O corpo é o primeiro território de expressão e o teatro torna ele livre. A liberdade de se expressar, de entender-se e partilhar-se como olhar de realidades em uma sociedade, ser e estar agente da história, criador e inventor de possibilidades de mundo, tudo isso a arte acorda. Alguém que partilha seu afeto sem medo, sua solidão ou diversos outros temas, temas esses que todo mundo vive e sente igual, instiga mudanças profundas no cotidiano de uma sociedade. Não há anestesia possível, e vivemos anestesiados.
Não há corpo individual no teatro. As memórias são coletivas. Pertencem a experiência coletiva, porque no fundo tudo é encontro. Teatro é encontro no sentido mais profundo dessa vivência. O teatro é uma estufa de memórias e ancestralidades, e nisso reside a resistência e continuidade de uma nação. Na consciência da própria história e nas transformações que precisam acontecer. Essas mudanças são complexas, diversas, tendo muitas rostos, etnias, gêneros e autenticidades. Não é uma transformação que quer o homogêneo, mas que não classifica e inferioriza as diferenças. A transformação pela arte legitima territórios de contradições e diferenças, e nos enxergando nessa complexidade, temos uma sociedade mais justa e igualitária.
Acredita que o teatro ainda encontra esse espaço de discussão política e social atualmente?
O teatro sempre vai encontrar seu espaço de discussão, sejam quais forem os obstáculos, porque não pede licença. O que é vivo e fluido está. Tem na própria pulsão a vontade de amanhã, de melhorar, de mudar, de transformar. Não há país sem arte. É tão fluido como o encontro de um voo e um céu. É forte, porque nasce de encontros humanos em altas intensidades de vida. de desejo de comunicar e partilhar essa existência, às vezes tão difícil. Não? Movimentos diversos tentam calar o teatro pela potência que existe nele. Pela potência em descamar o humano e a realidade, por dizer sobre tudo, revelar, transformar, criticar, incomodar, aliviar, complicar, descomplicar. O teatro não trabalha com o que se oculta, mas com aquilo que se revela. Por isso tão perseguido na história do nosso país, com políticos precisando da escuridão e da ignorância de uma nação. O teatro, como arte em geral, não veste mordaça ou coleira. Resiste a tortura dançando o sangue da própria reinvenção. No teatro o erro, o desagradável, o belo, o necessário e o banal, por exemplo, convivem entrelaçados. Exercita-se a diversidade em aspectos muito profundos. Infelizmente somos educados e domesticados socialmente a ignorar nosso potencial crítico e expressivo. Ensinam a gente a banir nossa liberdade e nosso potencial de reinvenção.
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Foto: Diego Bresani


Qual a importância do teatro na sociedade atual? Ele perdeu seu lugar em meio a tantas opções?
Tudo isso que estamos falando, pois são tantas importâncias. Mas uma talvez seja permitir que o corpo da gente seja livre para descobrir-se enquanto potência de voz, olhares sobre a vida, partilha de experiências, respiro e invenções de novas possibilidades e caminhos para o mundo. Estamos cada vez mais engessados. Inventaram um tempo em que todos devem obedecer. A arte expande a perspectiva de tempo e espaço quando devolve ao sujeito ser dono disso tudo. O teatro, como toda artesania humana, tem perdido espaço sim. Evita o encontro, porque no encontro é onde nos reconhecemos fortes. Mas o teatro sempre resistiu. O teatro floresce imensamente, e entende hoje diversas estratégias de partilha com a sociedade que mudou e sempre vai mudar.
O que mudaria em uma cidade e na comunidade que nela vive com a presença de diversos espaços teatrais e em uma cidade com ausência destes espaços?
Espaços culturais vivos em uma cidade geram memórias e legitimam afetos comuns entre cidadãos e espaços públicos. Outro lugar de consciência e convívio. Teríamos uma população mais autônoma, autêntica, crítica, coletiva e com mais partilha. Teríamos mais consciência acerca da história e da ancestralidade que fazemos parte. Teríamos mais respeito e espaços para nossa inevitável diversidade de gente, comportamentos e formas de expressar. Uma cidade com mais teatro, cultura e arte, adoece menos, é menos violenta, é mais criativa e menos preconceituosa. A perspectiva da arte é a pluralidade de diálogos. Preconceitos são ressignificados a todo instante. Sente-se a vida também pela perspectiva do outro. Infelizmente nosso país boicota a arte e o avanço dos afetos por meio de uma educação sensível e potencializadora de indivíduos e coletivos.
Acredita que a cena teatral brasiliense consegue se reinventar e se manter viva, mesmo com a falta ou diminuição de bons espaços?
O fechamento dos espaços públicos em Brasília é indigesto! Um desrespeito com o cidadão que contribui e quer cultura, um bem comum e um direito. Mas a cena teatral brasiliense se reinventa a todo instante sim. Temos muitos coletivos e muitas iniciativas resistindo, criando e sustentando a cadeia cultural da cidade. Os trabalhos buscam escolas, espaços alternativos, ruas, praças, casas e onde for possível para legitimar essa cadeia de troca com o público. O teatro é líquido, não se prende em caixas e conveniências de governo. O teatro sabe, como o povo, o que é ser margem, ter pouco incentivo e ter que lutar para existir. Essa força encontra qualquer circunstância para transformar. Ao mesmo tempo que há luta para garantir esse direito, tão básico e essencial como saúde e educação. Cultura é saúde e educação.

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Qual foi a experiência teatral mais rica que você já teve e de que maneira o teatro já te transformou?

Muito difícil dizer “a” experiência teatral mais rica, porque experiência é algo tão plural e vai se ramificando dentro da gente a um ponto que fica difícil separá-las. Mas as experiências me deram, dentre tantas coisas, uma consciência maior sobre a minha sensibilidade, identidade e liberdade. Não só a minha, como a do outro. Entender que a minha expressão é negra, gay e que já foi pobre, não é e nem pode ser mais acorrentada e violentada. Mesmo tendo vivenciado vários episódios de exclusão e preconceito, que até hoje marcam as notícias com tanta intolerância e a morte de diversas pessoas, afinal o Brasil é um dos países que mais mata gays, mulheres e transgêneros do mundo, eu partilho a minha expressão transcendendo a esterilidade do preconceito e buscando a comunicação pela arte como um ato de resistência e de propagação daquilo que acredito e desejo de mundo. E o mundo que desejo possui muitos espaços e diversas paisagens de beleza e afeto a serem partilhadas. O mundo que desejo não enlatou o convívio e não domesticou e cegou as autenticidades e realidades.

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