Conto do medo
Quando eu era criança, morria de medo do escuro. Acho que quase todo mundo já passou por isso. Quando eu apagava as luzes tinha a sensação de que um monte de gente me observava ao redor e eu não sabia quem. Foi aí que eu comecei a entender que a pior sensação de todas é se sentir sozinho no meio de uma multidão.
[Que a prisão do meu próprio medo Não vire uma torre sem porta. E que os fantasmas que crio por culpa Não me impeçam de gritar quem sou. Pois parte de mim é quem digo E a outra é o momento em que me calo]
Às vezes, quando o medo era tão forte que me fazia suar, eu gostava de acender uma vela. Assim eu podia sentir o cheiro do fogo e olhar praquela chama como se não existisse mais nada ao meu redor. Éramos eu e o fogo, era eu, dentro do meu próprio mundo. Ali, sem saber, eu descobri que o melhor jeito de não sentir medo é olhar pra dentro dos seus próprios olhos, e entender tudo o que acontece em volta sendo apenas a resposta daquilo que você mesmo enxerga. E assim eu me via quente, meio eu meio fogo, sem o medo frio que aprisiona os pés.
[Que o suor das minhas próprias palavras Não me deixe desistir de ser são. Que o amor que por vezes me toca na pele Seja sempre poesia a escorrer pelos poros. Pois parte de mim é o que amo E a outra é o que transformo em saudade ou canção]
Daquele jeito, até o escuro era bom e eu passei a amar a noite como a parte mais silenciosa do dia. E aí veio o medo da solidão. Eu corria das horas sozinhas com o desespero de quem foge do sol escaldante queimando a pele. Ela me perseguia, implacável, incansável. Eu suava de cansaço e chorava por não querer ceder. Eu estagnei, não conseguia mais fugir, não conseguia fazer mais nada sem que meus olhos parecessem dois cacos de vidro que tremiam, sem saber viver só.
E enfim, eu cedi. Olhei pra todos os lados e sentei quieta no banco mais distante do lugar mais vazio e silencioso que eu pude encontrar. Ali eu retirei o vidro que protegia meus olhos e deixei que eles vissem e dissessem todo o tipo de coisa. Joguei por perto uns papeis e fiquei por lá. Foram horas. A solidão me abraçou com a força de um amante desesperado que não sabe ao certo a hora de te deixar respirar. E eu a abracei de volta. E ali nos amamos. Depois do amor eu voltei a caminhar. Se um dia você puder abraçar seus próprios medos vai entender que o aconchego do abraço vicia mais que qualquer ilusão bem planejada.
[Que a solidão me abrace sempre como uma velha amiga E eu saiba meu espaço de verdade ou ilusão. Que eu preserve o mesmo sorriso tranquilo De quando me encanto a olhar para o céu. Pois parte de mim é o que tenho saudade E a outra é o que se reflete na minha própria visão]
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