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Dia do poeta da Literatura de Cordel

Foto do escritor: Isabella de AndradeIsabella de Andrade

Entre a rima solta e os versos despreocupados, o colorido dos papéis e o poeta sempre inspirado. A literatura de cordel é tradição conhecida e perpetuada em diversas regiões do país e hoje, dia 1º de agosto, é dia de comemorar os poetas do gênero.

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A influência vem de Portugal, onde os autores das poesias eram chamados trovadores e as declamavam acompanhados por uma viola. Apresentavam-se para o povo e falavam da cultura popular da localidade, dos acontecimentos mais falados nas redondezas, de amor, etc. Assim como no trovadorismo, movimento literário que abriga essa prática, hoje é a literatura de cordel. As competições entre dois trovadores, com suas violas, já aconteceram muito na França, Espanha e Portugal, tendo hoje ganhado ares brasileiros.


No Brasil prevalece a produção poética. Os temas são os mais variados, indo desde narrativas tradicionais transmitidas pelo povo oralmente até aventuras, histórias de amor, humor, ficção, e o folheto de caráter jornalístico, que conta um fato isolado, muitas vezes um boato, modificando-o para torná-lo divertido. Ao mesmo tempo que falam de temas religiosos, também falam de temas profanos.

O nome tem origem na forma como tradicionalmente os folhetos eram expostos para venda, pendurados em cordas, cordéis ou barbantes em Portugal. No Nordeste do Brasil o nome foi herdado, mas a tradição do barbante não se perpetuou: o folheto brasileiro pode ou não estar exposto em barbantes. Alguns poemas são ilustrados com xilogravuras, também usadas nas capas. As estrofes mais comuns são as de dez, oito ou seis versos.

Juntando poesia, gravura e protestos, a literatura de cordel representa uma das mais interessantes expressões da arte brasileira. Além disso, influenciou renomados escritores brasileiros como Jorge Amado, Guimarães Rosa e José Lins do Rego, mostrando que nem sempre o que é popular é de baixa qualidade.

No Brasil, a literatura de cordel é produção típica do Nordeste, sobretudo nos estados de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. Costumava ser vendida em mercados e feiras pelos próprios autores. Pelo fato de funcionar como divulgadora da arte do cotidiano, das tradições populares e dos autores locais (lembre-se a vitalidade deste gênero ainda no nordeste do Brasil), a literatura de cordel é de inestimável importância na manutenção das identidades locais e das tradições literárias regionais, contribuindo para a perpetuação do folclore brasileiro.

 

AQUELA DOSE DE AMOR (do livro DEZ CORDÉIS NUM CORDEL SÓ, Ed. Queima-Bucha, Mossoró, 2006) Antonio Francisco

Um certo dia eu estava Ao redor da minha aldeia Atirando nas rolinhas, Caçando rastros na areia, Atrás de me divertir Brincando com a vida alheia.

Eu andava mais na sombra Devido ao sol muito quente, Quando vi uma juriti Bebendo numa vertente. Atirei, ela voou. Mas foi cair lá na frente.

Carreguei a espingarda, Saí olhando pro chão, Procurando a juriti Nos troncos do algodão, Quando surgiu um velhinho Com um taco de pão na mão.

O velho disse: – “Senhor, Não quero lhe ofender, Mas se está com tanta fome E não tem o que comer, Mate a fome com este pão, Deixe este pássaro viver.”

Eu disse: – Muito obrigado, Pode guardar o seu pão… Eu gasto mais do que isso Com a minha munição. Eu mato só por prazer, Eu caço por diversão.

O velho disse: -“É normal Esse orgulho do senhor E todo esse egoísmo Que tem no interior. É porque falta no peito Aquela dose de amor.

Se eu tivesse botado Ela no seu coração, Você jamais mataria Um pardal sem precisão, Nem dava um tiro num pato Apenas por diversão.”

Eu fiquei muito confuso Com as frases do ancião. Aquelas suas palavras Tocaram meu coração Derrubando meu orgulho E a vaidade no chão.

Me vali da humildade E disse: – Perdão, senhor, Desculpe a minha arrogância, Mas lhe peço um favor, Que me conte essa história Sobre essa dose de amor.

O velho disse: – “Pois não. Vou explicar ao senhor Porque mesmo sem querer Sou o maior causador De hoje em dia o ser humano Ser tão carente de amor.

Isso tudo aconteceu Há muitos séculos atrás Quando meu Pai fez o mundo Terra, mares, vegetais. Me pediu pra lhe ajudar No último dos animais.

Pai me disse: – ‘Filho, eu fiz Da formiga ao pelicano; Botei veneno na cobra, Bico grande no tucano, Agora estou terminando Este animal ser humano.

Mas ficou meio sem graça Este animal predador… O couro não deu pra nada, A carne não tem sabor, Na cabeça tem juízo, Mas, no peito, pouco amor.

Por isso que eu lhe chamei Pra você lhe consertar, Botar mais amor no peito, Lhe ensinar a amar E tirar dessa cabeça O desejo de matar’.

Depois disse: – ‘Filho, vá Amanhã lá no quintal, No casa dos sentimentos, Perto do pote do mal… Traga a dose de amor E bote nesse animal’.

De manhã eu fui buscar Aquela dose sozinho, Mas na volta me entreti Brincando com um passarinho Perdi a dose do amor Numa curva do caminho.

Quando eu notei que perdi, Voltei correndo pra trás, Procurei em todo canto, Mas cadê eu achar mais. Aí eu fiz a loucura Que toda criança faz.

Voltei, peguei outra dose Igualzinha a do amor, O vidro da mesma altura, O rótulo da mesma cor… Cheguei em casa e botei No peito do predador.

Mas logo no outro dia Meu pai sem querer deu fé Do animal ser humano Chutando o sapo com o pé E no outro ele mangando Dos olhos do caboré.

Vendo aquilo pai chorou, Ficou triste, passou mal, Me chamou e disse: – ‘Filho, O bicho não tá normal. O que foi que você fez No peito desse animal?’

Quando eu contei a verdade De tudo aquilo que eu fiz Pai disse tremendo a voz: – ‘Eu sei que você não quis, Mas você botou foi ódio No peito desse infeliz.

Esse bicho inteligente Com esse ódio profundo, Com pouco amor nesse peito Não vai parar um segundo Enquanto não destruir A última célula do mundo.

Depois daquelas palavras, Chorei como um santo chora. Quando foi à meia-noite Eu saí de porta afora E nunca mais eu pisei Na casa que meu pai mora.

Daquele dia pra cá É esta a minha pisada, Procurando aquela dose Em todo canto da estrada, Pois, sem ela, o ser humano Pra meu pai não vale nada.

Sem ela, vocês humanos Não sabem dar sem pedir, Viver sem hipocrisia, Ficar por trás sem trair Nem distante do poder Nem discursar sem mentir.

Sem ela, vocês trucidam E batizam os crimes seus. Na era medieval Queimaram bruxas e ateus E perseguiram os hereges Usando o nome de Deus.

Sem ela, foram pra África E fizeram a escravidão… Com os grilhões do preconceito Escravizaram o irmão Com a espada na cintura E uma bíblia na mão’.

O velho disse: – “Perdoe Ter tomado o tempo seu. Consertar vocês, humanos, É um problema só meu.” Aí o velho sumiu Do jeito que apareceu.

E eu fiquei ali em pé Coçando o queixo com a mão, Pensando se era verdade As frases do ancião Ou se era tudo fruto Da minha imaginação.

E naquele mesmo instante Vi passando na estrada A juriti que eu chumbei Com uma asa quebrada, Mas não tive mais coragem De atirar na coitada.

Joguei fora a espingarda, Voltei olhando pro chão Procurando aquela dose Nos troncos do algodão Pra guardá-la com carinho Dentro do meu coração.

Se acaso algum de vocês Tiver a felicidade De encontrar aquela dose, Eu peço por caridade Derrame todo o sabor Daquela dose de amor No peito da humanidade.

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