Enquanto a menina brinca
Dia desses, quando amanheceu sol e ainda assim frio, eu lembrei que sonhei um sonho que tinha cheiro de verdade. Era eu acordada por uma menina e que por sempre menina estaria. Corria a escancarar janelas na certeza inesgotável de poder ver aquele pássaro laranja, que vivia na fazenda, passar voando sem ter pressa de voltar. A menina despenteava os cabelos debaixo da chuva e trazia do baú de memórias uma lâmpada e três desejos, que seriam feitos por qualquer criança da maneira que ela os faria. Pediu primeiro que lhe fosse guardado o segredo dos desejos e que depois, até mesmo ela o esquecesse, pois eram o sonho, o sorriso e a liberdade, vantagens de quem se esquecia. Pediu depois que fosse menina, na idade, no tamanho ou nos olhos, todos os dias, até o tempo em que pudesse e até o tempo que ainda nem existia. Correu a tacar longe algumas pedras por uns instantes, deu de comer ao cachorro, esqueceu dos pedidos, colheu uma flor e a amou, logo mais também se esqueceria. Lembrou-se do baú, era de memórias, e pediu por último que lhe fosse possível ter amor por todas as palavras do mundo.
Correu então a saltar as escadas e subiu na árvore mais próxima para colher as amoras mais roxas que pudessem existir no quintal do mundo. Sujou de amoras e amores a boca, as mãos, o rosto, os dentes e as próprias palavras, enquanto gargalhava um sorriso solto daqueles bem possíveis na mais doce vontade. Ainda rindo, olhou ao céu e contou nuvens até que as cores do dia se transformassem em uma imensa festa dançante. Hoje, a menina que será solta e risonha como tal, até o último dia de que se tem conhecimento, vive às reviravoltas no meu próprio quintal. Quando me esqueço do riso, ela dá uma gargalhada bem solta e sonora lá de cima e me joga algumas amoras. Experimento o sabor roxo da fruta e sorrio de volta, com os dentes sujos como nunca se viu igual. Lembro-me então da meninice preservada e a cada vez que a menina me brinca, lembro do poeta que nunca envelheceu, de tanto sonhar poesia.
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