Isabella de Andrade
Natalia Borges Polesso: Foi um pésimo dia
Um péssimo dia para jovens e adultos
A autora Natalia Borges Polesso dialoga com leitores de diferentes idades eu seu novo livro e aborda temas que perpassam a nossa trajetória pessoal em diferentes fases, como a dor, a tristeza do outro e a dos nossos próprios pais
O que torna uma história interessante para todos os públicos, inclusive os leitores mais jovens? Essa pergunta foi um dos pontos de partida para a criação de Foi um péssimo dia, novo livro da gaúcha Natalia Borges Polesso, que acredita na ideia de que boa parte das obras podem ser lidas por qualquer pessoa, em qualquer época da vida, afinal, existe uma linha muito tênue entre o que se costuma chamar de literatura feita para adultos ou jovens. Entre a nostalgia da infância e adolescência vivida na década de 1980 e 1990, balas soft que escorregavam pela garganta dos pequenos e a revelação analógica da fotografia, crianças e jovens, inclusive ela, passavam pelo turbilhão emocional que é tentar entender os próprios sentimentos, assim como acontece com os mais jovens (e não tão jovens) em 2023, ainda que mais cercados de tecnologia.
Para ela, responder essa questão primordial do interesse que se desperta por uma história em qualquer idade passa também pelo entendimento da experimentação de uma linguagem que possa contar a narrativa pelo caminho certo. Essa linguagem, mais coloquial e perto da fala, já foi utilizada pela autora em seus livros anteriores. Além de romances e livros de contos premiados, como Amora, a autora também já escreveu um livro infantil e até um artigo sobre narradores infantis publicado como se fosse um trabalho de escola. O interesse nesses narradores e a prática nessa linguagem vem de uma construção anterior em seu projeto de literatura, que agora se concretiza no livro Foi um péssimo dia, lançado em outubro pela editora Dublinense.
Natalia não foge da definição de autoficção, ao contrário, conta que a Natalia do livro foi totalmente inspirada nela, a partir de dois eventos essenciais, um durante a sua infância, outro durante a adolescência. “Eu ficcionalizo esses dois episódios a partir das minhas memórias. Há elementos dessa trama que são totalmente inventados, enquanto os dois fatos centrais aconteceram e foram marcantes. Apesar da inspiração a partir da memória, a forma como esses eventos aconteceram é parte do processo de ficção”, destaca a autora.
Experimentando a linguagem
Para ela, o mergulho em um livro que se aproxima tanto do público jovem é parte de um caminho, uma peça em todo um projeto literário. “Por exemplo, no livro Controle, a linguagem era muito centrada na linguagem da personagem, porque ela precisava dizer o que estava sentindo. Ela precisava entender o que sentia, é uma personagem que tem epilepsia e está também descobrindo a sua sexualidade. Então a linguagem se transforma, para ela, em um caminho para a compreensão. E para o leitor entender esses pensamentos também”, destaca.
Em Foi um péssimo dia esse trabalho com a linguagem também é apresentado, mas com um truque: logo no início a autora dá a dica de que esse será um livro de memórias, de lembrar de si mesmo. A personagem está em um ponto futuro da vida e está falando de suas lembranças. “E aí você não se obriga a fazer uma linguagem especificamente de criança ou adolescente, mas tem esse subterfúgio da memória”, afirma Natalia.
A autora conta ainda ter entendido um pouco mais dessa linguagem pela primeira vez em um conto de Clarice Lispector, chamado Restos de Carnaval. “No conto existe uma narradora que ganha restos de papel crepom rosa para fazer sua fantasia de carnaval. A narradora-personagem, já adulta, lembra desse acontecimento e já consegue entender o que aconteceu com os pais na época. É como no meu livro, em que a narradora já consegue entender que aquele dia foi péssimo não apenas para ela, mas também para os pais”.
Complexidade e caminhos possíveis
Existe outro ponto de destaque na relação da autora com essa forma de pensar os livros e leitores. Para Natalia, o público leitor desse tipo de leitura já tem a sua formação própria dentro de uma trajetória específica. “Muita gente acha que livros classificados como jovem adulto sejam uma etapa para depois chegar a uma leitura mais complexa, mas eu discordo um pouco dessa perspectiva, acredito que esses livros para o público mais jovem não deixam de ter as suas complexidades, não deixam de tocar em assuntos que são densos, tem as particularidades das personagens que, claro, vão ter certa idade, mas isso não muda a complexidade”, destaca.
Para ela, são livros que também trazem debates importantes, reflexões a respeito dos próprios sentimentos, boas histórias. Logo, eles não seriam apenas uma etapa para o público leitor. Natalia lembra ainda que, como na chamada literatura adulta, essas questões vão depender de cada obra, ou seja, nem sempre a literatura jovem vai ser complexa, assim como acontece na chamada grande literatura. “Não é um elemento inerente ao gênero, mas inerente ao projeto literário de cada autor”, finaliza.
Foi um péssimo dia busca criar uma espécie de mapa para a compreensão das emoções da personagem, tanto na infância quanto na adolescência e, para além dessa compreensão, uma tentativa de aprendizado na comunicação. Para a autora, chama atenção uma certa incomunicabilidade de mundos que existem entre adultos e crianças. “No livro a personagem não tem as ferramentas, as palavras complexas para entender o que sente, não sabe articular tão bem essa experiência de tentar entender ela mesma e o outro”, afirma.
O livro aborda temas como ansiedade e outros transtornos que hoje parecem ainda mais presente na vida de pessoas mais jovens, criando uma comunicação direta com os tempos atuais, ainda que a narrativa transite pela nostalgia de décadas passadas. Alguns itens transportam o leitor diretamente para essa atmosfera nostálgica, como objetos mágicos para caminhar no tempo. Entre eles, um cartão de biblioteca, fotos reveladas em ambiente analógico e as famosas balas soft. A autora lembra que livro tem essa pegada jovem sobre a construção das emoções, sentimento e é nesse ponto em que ele se conecta com pessoas de diferentes idades.
É esse o grande enigma presente no livro e, claro, na vida de jovens e adultos: a aceitação de si, entender quem se é. A narrativa parte da ideia de que escrever nossas próprias memórias é um ótimo exercício para compreender melhor as próprias experiências, essa afirmação é feita pela protagonista ao longo das páginas. Foi um péssimo dia fala, assim, muito mais do que um dia ruim para pais e filhos, mas sobre a longa caminhada que percorremos entre comunicação e emoção, entre diálogo, entendimento e experiência e ela está presente em qualquer idade.
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