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Foto do escritorIsabella de Andrade

Pelos olhos de ver o mar

Um dos mares de Brasília – Pôr-do-sol no Parque da cidade (foto: Isabella de Andrade)


Sobe ao barco para esquecer o tempo, a criação supre o desejo de navegar. Há quem seja de amor, então respiro, há quem seja de mar.

Então me olhava com os olhinhos brilhosos de menino e ria da minha meninice, sem saber, ria também da sua e ríamos então da nossa. Então nos atrapalhávamos e deixávamos e permanecíamos sem parar. O bom do menino é que ele não se deixa engolir o tempo e, distraído, não deixa de sonhar.

E então disseram ao menino que lacrasse o baú de sonhos e tirasse os pés (olhos, dedos e risos) das nuvens que não deixavam de passar. E lhe disseram que o amor era coisa de menino mas quando cresce a gente larga de ver o vento e deixa de acreditar. Olhou então na direção da água salgada, o menino, pensou no barco e esteve certo: se não é possível viver o amor, há que se permitir balançar as ondas e ser então, menino do mar.

O pé na areia e o coração no mar. Grudar na pele a brisa salgada, fechar os olhos e sentir mais a fundo o cheiro de vento. Vê de novo os barcos em frente. Mergulha sem sobressaltos, deixa balançar por onde levam as ondas. Engole um punhado de sal, sente o gosto se espalhar. Deita a palidez sob o alaranjado do sol. Há quem seja de amor, há quem seja de mar.

Pelos olhos vive o menino

só pra ver o que será do que navega ou sopra aos pouquinhos entre as nuvens e espuma do mar.

Faz do sonho o próprio caminho sem saber o que virá. Abre o peito e arde um tantinho deixa então o mergulho sarar.

Vê as ondas e corre o menino lança o barco por onde ventar. Fecha os olhos e sabe o menino é de sal e sonhos a água do mar.

Era meu sonho construir um barco

de vela amarela E me perder no mar. Então eu vi meu bem com os olhos perdidos pequeninos na janela. Pois deixa o barco, todo canto é canto e tempo de navegar. Vê, são teus olhos Agora infinitos em qualquer janela. Doidos pra gente voar.

– Tem marinheiro no mar! Quem é?

(menina) – Pois abre bem esses ouvidos que vou lhe dizer quem é Maria, pode ser uma Maria qualquer.

Maria, como tantas outras, se agarraria ao fiel princípio de não deixar-se levar ao instante do nada. Entorpecida pelo desejo inalterado de envolver-se no mergulho que nos faz permanecer com os olhos viciados em um ponto de memória, arrancaria a própria pele na tentativa de não se fazer desintegrar. A descoberta de toda intensa sensação permaneceria ali, como uma crosta que envolve os pequenos buracos que se abrem com a percepção do fim. Ainda que o intenso ardor viesse da certeza de não poder, outra vez, jogar os risos e os cabelos ao princípio, como se o tempo não fosse capaz de firmar o concreto da última vez, permaneceria fiel a cumplicidade de si. Insone, com o olfato, o tato e os pequeninos dedos perdidos entre a mais doce e absurda ilusão, construía edifícios de sensações, ruas de sonhos envoltas em cidades de papel e ao fim dos dias, concreto. Sentia a dureza cinza de toda a desconstrução que já não consegue deixar-se de fazer. Titubeava outra vez ao encontrar-se com o relógio. Era então Maria menina, com as unhas cravadas em garras nos sonhos ainda por fazer. Engolia o tempo. Era então Maria moça, com o sal dos olhos secos e uma teia de verdades a tecer. Olhava outra vez a janela, não havia estrela, mas agora saberia que os olhos buscam a poesia do céu que querem ver. Era então Maria mulher, desgarrada de todo instante cinza-concreto, escutava e abraçava o mundo quase vazio, deixando soprar o vento em solitude do anoitecer. Soltava os pés na areia mansa, sem deixar enraizar o próprio ser. Haveria de saber, bastaria o riso terno ao caminho incerto, ainda que pulsasse a vontade de endurecer. Ao fim, arde a impossibilidade de poder se agarrar ao princípio.

(menino) – E o que encontrou aí no meio de todo esse tempo?

(menina) – Alguns instantes de deixar os pés na terra e outro menino, mas esse era feito de sol.

(menino) – De que maneira?

(menina) – Ensolarado. Guardava calor, expandia calor, distribuía calor. Assim, como um pedaço de chama alaranjada, pronta para a combustão completa sem hesitar. Guardava quentura nos olhos como quem se encobre sem poder se camuflar. Sabia o tempo exato para fazer-se leve e eterno dentro de um único instante. Não existem receios onde os segundos se expandem como se o resto dos dias fosse algo insignificante. Todo abraço é feito de coragem. E você?

(menino) – Subo ao barco quando já não sei onde pisar!

(menina) – De que maneira?

(menino) – Inebriante…

Pulsa a sensação como um ritmo Desagradável, insonso, nauseante. Um chute no estômago, um rasgo no tempo, Uma quebra no centro, uma falta de certo, Um ponto qualquer de lamento. Há que se entender , o amor, Ainda que terno, ainda que perfumado, Ainda que flores, ainda que saltos, É uma impensável abertura de entranhas. Tire então todas, jogue-as fora, pinte de outras cores, Tempere com algum suspeito e inaceitável fato, Amasse ao ponto em que te seja possível agarrar entre as mãos, Enquanto lhe escorre pelos dedos e ainda pelos olhos. Há que se entender que este, ainda que inebriante, Não se aquieta um minuto sequer. De bem comportados já bastam os tolos disfarces Que disfarçadamente, acreditamos crer para entregar O rasgo do tempo à quem foge covarde das horas dos dias. Não fugiremos.

(menina) – Havia o tempo da descoberta, da reinvenção, do riso e de outro despertar. A gente tenta fugir do tempo, impassível, constante, fiel, e por fim, cedemos. Guardamos novamente no baú de velhas ideias a percepção exagerada, quase ingênua, de que seríamos eternos aos olhos do outro. Passamos. Passaríamos sempre. A tentativa desesperada de mais alguns minutos, uma lembrança, um instante qualquer, um reviver de velhas fotografias. Passaríamos sempre. Nos olhos dos outros seria – eu? – o reflexo de tudo aquilo que sonhava ser eterno. E não é eterno o sonho de hoje? Recolheríamos as certezas de antes, há que se mudar de laços, risos e embaraços outra vez. Dizem que logo mais na frente construíram uma nova calçada, ela passa tranquila pelo espaço de ontem e faz uma curva por perto das ondas. Calcei meus novos sapatos, fiz outra vez a mochila, passaríamos sempre e claro, perderíamos alegremente os olhos pelo mar.

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