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Foto do escritorIsabella de Andrade

Pulso

No início o pulso, o agora, o tempo que não se incomoda em sair do concreto. E então o impulso, os dias, as horas, enlaçaria os dedos apenas em criação. Não. Sem laço. Outro impulso, não o contenho e então, grande, expande o peito, esmaga os ossos. Fecharia os olhos para fingir não enxergar e ainda assim, o barulho surdo, a explosão. Outra coleção de pequeninos pedaços de uma construção qualquer. Ah, a imaginação. Recolhe-se. O que esperava? Desencontro de olhos. Não seria uma brisa passageira? Somos um sopro. Eu queria poder reescrever o passado, como reescrevo tantas linhas no papel. Eu queria saber controlar o impulso que me move ao encontrar olhos que me prendem os olhos, assim como controlo o meu próprio tempo de olhar para o céu. Eu queria saber reconstruir cada pedaço daquilo que seguro com tamanha ansiedade que logo me escapa das mãos, eu queria poder recolher todos esses cacos e transformar teus olhos no ponto mais brilhante do universo, como pareciam ser antes de encontrar os meus. Eu ria do quanto te divertia saber que sim, sem deixar de viver todas as coisas, eu me encantava ao te lembrar durante todo o dia. Eu gosto de escrever sobre o amor, principalmente por ele sempre ter me parecido tão distante, imaginativo, fora do alcance, era sempre poesia. E quando alguém assim, desprevenido, esquecido, distraído, é pego ao acaso com um par de olhos fortes logo ao lado, que seguem em qualquer direção, eu te juro, é como se todo o universo que há por dentro sofresse alguma súbita combustão. Abre-se aí, nesse instante, alguma espécie de baú de recordações. Memórias inventadas. Eu quase não te sabia e no entanto, o peito alarmava alguma certeza: nunca te vi, desde sempre te conhecia. Desnudar a alma, compartilhar o tempo, sorrir pela descoberta de que sim, somos capazes, ainda que quebrados, de construir novos instantes. Cometer, em um único dia, todos os pecados que nos espreitam, atenciosos, famintos por peles e poros despertos. Entregar-se, até que nos caia a última gota de suor ou saliva, até que o dia se encolha, a boca seque e os olhos repousem, extasiados. Desaprendemos a controlar uma porção de impulsos, antes que estes, bem trancados, sejam capazes de corroer o último pedaço de crença que existiria em nós. O amor duplo, sensações misturadas, o êxtase do agora controlado – e quase trancafiado – pelos olhos impiedosos do ontem e do amanhã. O amor, pedaço de castigo intenso a que estão fadados todos os poetas. Eu nunca saberia fazer de outra maneira que não essa, o mergulho, o salto, o corpo entregue a qualquer possibilidade de maré que se colocaria a seguir. A fantasia é uma mentira cruel, foge ao perceber-se necessária. Cruel… Vi aquele copo d’água gelada em cima da mesa e me aproximei. A boca seca, a garganta apertada. Provei. Uma loucura de sabores veio a seguir, como se de todos os pequenos bocados de líquido do universo, aquele fosse feito para mim. O susto, tentei colocar novamente em seu lugar ao deparar-me com a certeza inconformada de que já havia lambuzado outras bocas aquele copo. Ansiedade. Deixei cair. Espatifou-se em mil pedaços. Não me ensinaram e segurar com ternura e cuidado algo bonito entre as mãos. Não me escondi. Recolhi cada minúsculo pedaço apenas para ter a certeza de jogar todos no lugar mais perto que eu pudesse encontrar do céu. Livres. Aprendi a viver assim, deixando soltos os pedaços que me quebram. O vento soprava outra vez tremendamente forte pelo buraco que em mim, se acabava de cavar. Senti o ardor em cada ponta e abri ainda mais os olhos. Mergulhei, ainda que tonta pela sensação do espaço vazio. Eu nunca gostei de lugares rasos.

Foto e texto: Isabella de Andrade

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