Sobre Marias
Três Marias. Todas elas assim, distraidamente enfileiradas. ‘É para combinar com as que ficam no céu?’. Sim! É para sentir-se como estrela, lembra de quando dizia que queria andar em nuvens? Soltar o peso do corpo e encostar os olhos fechados no céu, descobrir de uma vez o que tem lá em cima. Mas se você sobe não é possível voltar, Maria. Diz que o tempo é tão disperso que faz a gente esquecer toda pressa, incerteza ou vontade de ficar. Diz que é possível fechar os olhos e sentir todas as sensações do mundo lhe passarem de uma vez só, como um baque de encontro ao chão. Diz que a gente não assina termos, Maria, vai caminhando e aos pouquinhos sente a certeza do caminho sem nó. Diz que a gente nem percebe a hora, não tem fundo do poço nem um ápice a chegar sem demora. Diz que o passo vai devagarzinho e o cronômetro não apita pra assustar. Mas isso tudo ouvi dizer, Maria. Pois diz ainda que tem que ter coragem pra desprender os pés e deixar o corpo se soltar. Diz que é preciso ter um bocado de chão pra ter um bocadinho de ar. Vai ver que um dia tem.
E onde esconde o seu gosto do passado? Onde se escondem os sorrisos das que são hoje, Marias, doces senhoras e até ontem eram, Marias, perturbadas meninas? Quem nos leva o gosto dos primeiros afeitos, o olhar do não saber aquilo que era mais claro e compreensível? Não são de todo doces, as senhoras, levam no peito algo de amargo, algo de apimentado, algo de excêntrico para poder temperar a todo gosto de amor ou de fardo. Onde guarda tua despenteada e barulhenta meninice? Vejo dela alguns instantes, que explodem para despertar sorrisos mas não adianta, não te servem mais a todo tempo essas antigas roupas.Teu armário, assim como tuas palavras e teus rápidos passos de dança não lhe cabem mais à nova pele experimentada. E agora, vai vestir novas lembranças. Mas sente a essência? Não te preocupes, permanece a mesma.
E de todas, hoje, qual Maria seria? De pés descalços, pele vermelha, o cabelo a descer suor. Maria desajustada, do olho brincante e a cabeça avoada. Maria da noite pura, do dia encardido e madrugada nua. Era então Maria de risos, de dente espalhado, um abraço entorpecido, preso por um vestido rodado. Corria na pressa de esconder a risada escancarada, solta no tempo e na cara da menina desajustada. Era então Maria do instante, doida por esquecer-se logo o segundo de um pé atrás. Saltou os degraus da escada, o cabelo balançando no vento, como balançam todas as Marias de pele adocicada.
Maria, uma delas, acreditava que amor mesmo era poder amar sem pirotecnias. Teve certeza que era certo mesmo naquele dia, deitada ao sol sem um centavo no bolso, a canga no chão, o outro a lhe sorrir umas bobagens. Batia um vento fraquinho e passava gente vez ou outra, logo em cima um coqueiro quase alto – ainda sem coco – fazia uma sobra certeira em um bom pedaço de chão. Surgia nuvem diferente a toda, o barulho da água se escutava bem pouquinho, a conversa era solta e o tempo ainda mais. O cabelo já bagunçado, o rosto suado, maquiagem por fazer e a alma toda nua, sabia-se linda. O assunto saía, silenciava, dançava outra música e outra vez retornava, ninguém mais haveria de saber. O olho ainda aberto, por vezes semicerrado, esquecia o que havia ao redor. Maria, jogada ao sol, apenas sorria. Não é assim que haveria de ser?
Encarcerada por sorrisos, entrecortada por insistência em sonhos. Maria, como tantas, impulsionava o próprio passo a caminhar descalço por alguns dias em vão. O cabelo preso, a perna afobada, o olho doído e a boca um tanto rachada. Passa logo um batom, do bem forte, uma sensação de cor espalhada pelo rosto suado de tanto apressar o passo. Pois então, corre, que há ainda essa mania de levar as horas como uma disputa inadiável qualquer. Apertava o olho todo dia, se lhe espantasse o sol, o vento, a poeira, o tempo já fechado ou qualquer outra possibilidade que ao céu ali cabia. Empurrava outra vez o passo, chutava fora uns restos de coisa seca, e caminhava depressa, que calçada quebrada nunca foi de fazer tropeçarem os pés empoeirados de Maria. E abre outra vez as cortinas, com firmeza e um certo asco de se queimar novamente ao sol, que sem amores não há pele que sustente uma chegada do verão. Um suor solitário que lhe escorria ao menor sinal de ação. E que Maria seria? Das mais tortas, um tanto entorpecente e por demais calada. Acompanhava o ritmo de fora com a mesma insensatez que permitia acelerar outra vez o ritmo de dentro. Displicente ao passado, rasgava toda folha que, por algum infortúnio, lhe escorregasse por entre os dedos. Suava outra vez, resignada. Assumiu o próprio tato descontrolado e fechou outra vez as cortinas. O silêncio é a única verdade fiel.
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